Desejar não é simples.
Ao contrário do que propõe a autoajuda de superfície, o desejo não é espontâneo, natural, intuitivo.
Ele não emerge como vontade clara, nem como escolha autônoma.
Desejar — de verdade — é uma conquista simbólica.
E, muitas vezes, essa conquista se dá contra o desejo do outro.
Ou melhor: apesar dele.
Porque o desejo do sujeito, como nos lembra Lacan, é sempre constituído no campo do Outro.
Somos, inicialmente, desejados — e desejamos ser desejados.
A criança deseja o que faz brilhar o olhar dos pais.
O adulto deseja aquilo que lhe parece desejável no olhar do mundo.
Mas há um ponto em que essa estrutura, necessária à constituição do eu, começa a aprisionar.
O sujeito passa a desejar não o que pulsa nele, mas o que lhe parece validado, reconhecível, admirável — ou, ainda, o que evita conflito.
E assim, a vida vira uma série de escolhas que, embora funcionais, nunca são propriamente suas.
O desejo do outro é contagiante.
Você se aproxima de alguém — um parceiro, um mentor, um amigo — e, sem perceber, começa a se moldar.
Você muda o tom, ajusta os interesses, recalibra as vontades.
No início, parece empatia.
Depois, parceria.
Mas, se não houver um gesto de diferenciação simbólica, o sujeito se perde.
E o mais trágico é que essa perda não é sentida como erro — mas como conforto.
Você se sente seguro, orientado, até amado.
Mas em troca, abdica da própria escuta interna.
Abdica da solidão que o desejo exige para emergir.
Na clínica, isso aparece como uma angústia difusa:
“Não sei mais o que quero.”
“Não sei se estou nesse caminho por mim ou por ele.”
“Não sei se esse sonho é meu.”
O desejo perdeu o endereço — ou melhor, nunca chegou a ser inteiramente seu.
Como diria Winnicott, o verdadeiro self não é aquele que se adapta — é aquele que pode emergir sem medo de perder o vínculo.
O desejo verdadeiro é aquele que suporta a desaprovação do outro sem se desfazer.
I. Sinais de que você está mais no desejo do outro do que no seu
1. Você precisa da validação alheia para confiar na própria escolha
Antes de decidir, você consulta.
Antes de agir, você espera aprovação.
Você confunde conselho com permissão.
2. Você sente culpa quando pensa algo diferente das pessoas que ama
Discordar dói.
Desejar algo que o outro não deseja te coloca num lugar de ameaça.
Você se sente ingrato, egoísta, desleal.
3. Você se adapta tão bem que esqueceu quem era antes da relação
Parcerias te transformam — mas sempre no sentido de se moldar.
Você se funde.
E depois, quando a relação muda, você se sente vazio.
4. Você racionaliza o incômodo interno como problema seu, nunca da relação
Se algo te inquieta, você interpreta como instabilidade pessoal, drama, carência.
Você não escuta que talvez esteja desejando algo que não cabe mais naquela estrutura.
II. Caminhos simbólicos para acessar o desejo sem perder o vínculo — nem a si mesmo
1. Diferencie desejo de expectativa
O desejo é falta estruturante, força criativa, aposta sem garantia.
A expectativa é cálculo emocional: o que você acha que deveria querer para manter a paz.
Toda vez que você escolhe pelo “o que vai manter tudo bem”, o desejo perde.
2. Permita-se decepcionar — sem trair
Dizer “não quero isso” para alguém que te ama não é traição afetiva.
É sinal de que a relação suporta alteridade.
Desagradar sem romper é um dos sinais mais potentes de vínculo maduro.
3. Crie zonas privadas de desejo inconfessável
Nem todo desejo precisa virar escolha pública.
Mas todo desejo precisa de espaço simbólico para existir — mesmo que apenas no silêncio da análise, da escrita, do sonho.
4. Torne-se infiel ao ideal que te adapta
Você foi treinado para ser desejável, coerente, compreensível.
Mas a vida simbólica começa quando você desobedece o personagem que montaram para você habitar.
O desejo não mora no ideal.
Mora naquilo que você teme dizer em voz alta — mas que não deixa de pulsar.
Desejar por si exige solidão, desapontamento e atravessamento.
Mas é isso que marca a diferença entre viver como extensão do outro — ou como sujeito.
Você pode amar sem se fundir.
Pode pertencer sem se adaptar.
Pode sustentar o laço sem precisar se abandonar.
Porque o desejo que é só reflexo nunca te satisfará.
Mas o desejo que nasce em você — mesmo que custe — é o único que te devolve à vida.